Conheço um ateu que acredita que qualquer ser, a partir da sua fecundação, seja ele vegetal ou animal (incluindo os seres humanos, claro), tem sua função vital ativada e, portanto, sua importância incontestável na existência e na dinâmica do Universo.
Santo Agostinho (sec. IV) e São Tomaz de Aquino (sec. XIII), admitem que a “alma” só é infundida no embrião após 40 dias de fecundado. Essa teoria passou a ser doutrina oficial da igreja Católica no sec. XVI, a partir do Concílio de Trento. Posteriormente, contestada por alguns teólogos, a discussão encerrou-se com a encíclica Apostólica Sedis (1869), onde o Papa Pio IX condena qualquer interrupção voluntária da gravidez.
Se recorrermos à Ciência, ela nos indica que a vida humana começa com a fecundação, a partir da meiose. Portanto, um aborto, em qualquer momento, no meu entender, é a interrupção de uma vida, de um ser humano em processo de formação. Não faria porque nada justificaria eu rejeitar um filho, nada ficaria acima da importância de se ter um filho...
Segundo Frei Beto, “o debate sobre se o ser embrionário merece ou não reconhecimento de sua dignidade não deve induzir ao moralismo intolerante, que ignora o drama de mulheres que optam pelo aborto por razões que não são de mero egoísmo ou conveniência social. Trata-se de mulheres muito pobres que, objetiva e subjetivamente, não têm condições de assumir o filho; de prostitutas que dependem de seus corpos para sobreviver e dar de comer a seus dependentes; de casais que se deparam com uma gravidez imprevista que viria desestabilizar a vida conjugal e familiar; de mulheres mentalmente enfermas, incapacitadas para cuidar de uma criança; ou que engravidam involuntariamente após os 40 anos, quando aumenta a possibilidade de nascer um filho com deficiência.
É a defesa do sagrado dom da vida que levanta a pergunta se é lícito manter o aborto à margem da lei, pondo em risco também a vida de inúmeras mulheres que, na falta de recursos, tentam provocá-lo com chás, venenos, agulhas ou a ajuda de curiosas, em precárias condições higiênicas e terapêuticas. Uma legislação em favor da vida faria este problema humano emergir das sombras para ser adequadamente tratado à luz do Direito, da moral e da responsabilidade social do poder público...
A morte clandestina no ventre elimina qualquer risco à propriedade e à imagem pública do proprietário. Para este, aliás, não há ilegalidade nesta matéria. Basta enviar a gestante a uma clínica particular e tudo se resolve. Mas como ficam as mulheres pobres que não podem ter filhos, senão sob o risco de perderem o emprego e deixarem a família na miséria? São inúmeras as que, para obter trabalho, se vêem obrigadas a esconder que são casadas e a impedir ou interromper a gravidez.
Se os moralistas fossem sinceramente contra o aborto, lutariam para que não se tornasse necessário e todos pudessem nascer em condições sociais seguras...
A descriminalização não reduz o número de abortos clandestinos. Muitas mulheres continuam a preferir o anonimato, para evitar danos à sua imagem social e/ou à do parceiro. Diminui é o número de óbitos em conseqüência do aborto. Em países onde o aborto não é criminalizado, inúmeras gestantes, ao procurarem os serviços sociais decididas a fazê-lo, são convencidas a ter o filho - o que não ocorreria se vigorasse a criminalização”.
Não se trata, pois, de legalizar o aborto, como se fez com o divórcio. Antes disso, trata-se de impedi-lo e defender os direitos da vida em embrião. Assim, uma legislação em favor da vida deve obrigar o poder público a promover amplas campanhas contra o aborto; esclarecer suas implicações morais, físicas e psicológicas; prever sanções aos empregadores que recusam mulheres casadas ou não dão suficiente apoio às gestantes; criar postos de atendimento às gestantes que pensam em abortar, onde médicos, psicólogos, assistentes sociais e, inclusive, ministros da confissão religiosa da interessada, procurem convencê-la a assumir o filho, demovendo preconceitos; ampliar a rede de Casas da Mãe Solteira, de modo a evitar que as gestantes solteiras sejam induzidas ao aborto por desamparo afetivo, moral ou econômico; assegurar o salário-maternidade e multiplicar o número de creches; criar o sistema telefônico de atendimento às mulheres angustiadas por gravidez imprevista, o SOS Futuras Mães; oferecer ajuda financeira às famílias que adotam crianças rejeitadas por suas mães etc.
Em suma, assegurar o direito à vida do embrião e amparo moral, psicológico e econômico à gestante, bem como prescrever medidas concretas que socialmente venham a tornar o aborto desnecessário”.
Frei Betto é escritor, autor de "A mosca azul - reflexão sobre o poder" (Rocco), entre outros livros.